Há cerca de 25 anos, o cardiologista Hans Dohmann iniciou no Brasil uma trajetória de pesquisa com células-tronco que viria a se tornar referência internacional. Em 2001, no Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro, Dohmann e sua equipe, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Texas Heart Institute, começaram um estudo com pacientes portadores de insuficiência cardíaca crônica. O grupo selecionado reunia pessoas que não tinham mais indicação para revascularização convencional, como ponte de safena ou angioplastia, em outras palavras, pacientes sem alternativas terapêuticas disponíveis.
No estudo, 21 pacientes foram acompanhados. Quatorze receberam implante de células-tronco obtidas da própria medula óssea, enquanto sete integraram o grupo controle, sem intervenção. Ao longo do acompanhamento, os resultados chamaram atenção: dos 14 tratados, 12 sobreviveram e apresentaram melhora na irrigação sanguínea e na contratilidade do músculo cardíaco, enquanto o grupo controle não apresentou o mesmo progresso. O trabalho, desenvolvido com rigor científico e acompanhamento clínico, se tornou um marco na história da cardiologia regenerativa brasileira e foi um dos primeiros experimentos desse tipo realizados no mundo em pacientes humanos.
Evolução e desafios científicos
Desde então, Dohmann tem se dedicado a entender os mecanismos, os limites e o potencial da regeneração cardíaca a partir das células-tronco. As pesquisas se concentraram em três grandes frentes: a segurança do procedimento, a eficácia a longo prazo e os critérios de seleção dos pacientes.
No campo da segurança, os estudos buscaram determinar se o implante das células poderia provocar reações adversas ou efeitos indesejados, como arritmias, inflamações ou formação de tecido anômalo. Já em relação à eficácia, o foco foi compreender se as melhorias observadas se mantinham ao longo dos anos, incluindo o aumento da perfusão miocárdica, a redução da fibrose e o ganho de contratilidade. Por fim, a seleção dos pacientes tornou-se essencial: as pesquisas mostraram que o estágio da doença, o tipo de lesão cardíaca e o tempo decorrido desde o infarto influenciam diretamente na resposta ao tratamento.
Em 2004, um balanço publicado pela Fapesp destacou que a equipe liderada por Dohmann havia realizado os primeiros transplantes de células-tronco em portadores de insuficiência cardíaca crônica no país, obtendo resultados encorajadores. O processo de coleta, preparo e aplicação das células foi sendo aprimorado com o tempo, incorporando novas técnicas de injeção em regiões com menor fibrose, uso de imagem cardíaca para guiar o procedimento e critérios mais precisos de acompanhamento clínico. Essa combinação de inovação técnica e avaliação científica consolidou a base de um campo que, embora ainda em desenvolvimento, transformou a forma como se pensa o tratamento das doenças cardíacas graves.
Impacto na vida das pessoas e na saúde pública
Embora a terapia celular ainda não seja uma prática de rotina, as pesquisas conduzidas por Dohmann demonstraram que é possível estimular a regeneração de áreas lesionadas do coração, um conceito antes considerado inalcançável. Essa possibilidade abre caminho para reduzir a progressão da insuficiência cardíaca e melhorar a qualidade de vida de pacientes que, até então, viviam com limitações severas e poucas opções terapêuticas.
Além do impacto clínico, essas pesquisas representam um modelo de integração entre o ambiente acadêmico e a prática hospitalar. A aplicação de métodos experimentais com pacientes reais, o acompanhamento por equipe multidisciplinar e a comparação sistemática com grupos de controle mostraram que é possível transformar descobertas laboratoriais em soluções concretas. Isso fortalece o ecossistema de inovação em saúde no Brasil, especialmente em um campo de alta complexidade como a cardiologia.
Segundo dados da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), as doenças cardiovasculares seguem entre as principais causas de morte no país, sendo responsáveis por mais de 380 mil óbitos anuais. No Sistema Único de Saúde (SUS), os procedimentos cardiovasculares consomem mais de R$ 1 bilhão por ano. O desenvolvimento de terapias regenerativas eficazes poderia reduzir significativamente esse impacto, ao diminuir hospitalizações, complicações e a necessidade de transplantes cardíacos. Para os pacientes, isso se traduz em menos internações, maior autonomia e novas perspectivas de tratamento.
Limites e perspectivas futuras
Mesmo com os resultados promissores, Dohmann destaca que a cardiologia regenerativa ainda enfrenta desafios. Os estudos realizados até o momento envolvem amostras pequenas e acompanhamentos relativamente curtos, o que torna essencial a expansão para pesquisas multicêntricas, com maior número de pacientes e avaliação de longo prazo. Além disso, ainda há variações importantes nos resultados entre diferentes grupos e centros de pesquisa, reflexo da heterogeneidade dos casos clínicos e das metodologias utilizadas.
Questões regulatórias, custos de produção e a necessidade de equipes altamente especializadas também são obstáculos para a incorporação dessas terapias em larga escala. Mesmo assim, Dohmann acredita que o campo está amadurecendo rapidamente. “Nosso estudo inicial já demonstrou que podemos oferecer algo além do reparo sintomático; é possível promover alterações estruturais no coração”, afirma o médico. Segundo ele, os próximos anos devem trazer dados mais robustos de fases 2 e 3 de pesquisa, com acompanhamento prolongado e melhor compreensão dos mecanismos biológicos que sustentam a regeneração tecidual.
Essa evolução tende a se integrar com outras tecnologias emergentes, como a inteligência artificial aplicada ao monitoramento de pacientes, a análise de imagens cardíacas avançadas e a medicina personalizada. Na visão de Dohmann, o futuro da cardiologia está na combinação entre cuidado preventivo, inovação terapêutica e modelos de gestão mais eficientes, princípios que ele vem aplicando também no Hospital Virtual Verde, iniciativa que dirige atualmente na Stone, voltada à promoção de saúde populacional e ao uso racional de serviços presenciais.
Um marco para a ciência e para o país
Ao completar 25 anos de pesquisa na área, Hans Dohmann reflete sobre o papel da ciência na transformação da medicina e na vida das pessoas. “Quando iniciamos este trabalho, nosso objetivo era estabelecer se as células-tronco poderiam efetivamente regenerar áreas do coração que se tornaram inativas após infarto ou lesão isquêmica. Ver que 12 dos 14 pacientes tratados sobreviveram e apresentaram melhora funcional foi um estímulo para continuar”, relembra. Ele acrescenta que cada caso é uma lição, e que a resposta dos pacientes depende de fatores clínicos e biológicos que ainda estão sendo compreendidos.
O marco de 25 anos não representa apenas uma trajetória individual, mas o amadurecimento de um campo científico que coloca o Brasil em posição de destaque no cenário da cardiologia regenerativa mundial. Em um país onde as doenças cardíacas permanecem como a principal causa de morte, o avanço desse tipo de pesquisa significa mais do que inovação: é uma possibilidade concreta de esperança e de futuro para milhares de pessoas.
Sobre Hans Dohmann

Hans Dohmann é médico cardiologista, mestre pela UERJ e doutor pela UFRJ. Atuou como pesquisador, gestor público e executivo na saúde privada. Diretor médico da Stone, lidera o desenvolvimento do Hospital Virtual Verde.
Com MBAs em saúde (Coppead/UFRJ e IBMEC-RJ, com extensão na Johns Hopkins), e cursos em Harvard e McMaster, foi diretor do Hospital Pró-Cardíaco, do Instituto Estadual de Cardiologia e do Instituto Nacional de Cardiologia. Entre 2009 e 2014, atuou como secretário municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Na saúde privada, trabalhou na Amil/UHG e na startup Vitta, onde participou da criação do primeiro hospital digital do Brasil.
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