O dia 1º de setembro de 1985 pode ser considerado como uma data histórica para a medicina brasileira. Foi nessa data, mais precisamente no Hospital das Clínicas, em São Paulo, que foi concluído o primeiro transplante bem-sucedido de fígado no país com participação do Dr. Sérgio Mies.
Naquela ocasião, uma equipe de médicos brasileiros, tendo à frente o cirurgião e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Silvano Raia, foi a responsável pela realização da mais complexa e desafiadora intervenção cirúrgica já efetuada no Brasil até então.
A equipe médica é reconhecida como a pioneira da técnica de transplante, tanto no Brasil quanto na América Latina, ajudando a posicionar o país no distinto grupo das nações com estrutura e conhecimento para a realização de transplantes hepáticos.
Na operação, realizada no Hospital das Clínicas, naquele 1º de setembro chuvoso, 20 médicos mobilizados se revezaram, durante 23 horas, nos cuidados da jovem estudante de Direito Maria Regina Mascarenhas, de 22 anos. O objetivo era permitir que ela recebesse o fígado de um operário falecido em um acidente.
Primeiras tentativas de transplante
Para entender o êxito da intervenção brasileira é importante conhecer a história das primeiras intervenções para transplante de fígado.
Sérgio Mies, que era o braço direito de Silvano Raia na exitosa intervenção de 36 anos atrás, relembra que, na época em que terminou a sua residência médica e apresentou a sua Tese de Doutorado na Faculdade de Medicina da USP, em 1973, era raro que algum médico aceitasse atender pacientes com problemas no fígado. “Quando chegava um paciente com problema no fígado, a maior parte dos médicos saía e ia para outros lugares, porque eles não queriam atender esses pacientes, pois era um momento em que se conhecia muito pouco sobre o funcionamento desse órgão”, explica.
Ele admite que, ao contrário dos colegas, gostava de atender esses pacientes e até procurava esses casos, tratando ocorrências de cirrose, esquistossomose mansônica, hipertensão portal, entre outras.
No mundo, a primeira cirurgia de transplante realizada aconteceu em 1963, em Denver, nos Estados Unidos, sob o comando do médico Thomaz Starzl. Nessa época, somente quatro países apresentavam programas constantes de transplante de fígado: Estados Unidos, Inglaterra, Holanda e Alemanha.
Até a realização do primeiro transplante bem-sucedido no mundo, que ocorreu em 1967, também pelas mãos do Dr. Thomaz Starzl, dezenas de pessoas faleceram nos centros cirúrgicos, o que provocou até greves de anestesistas, incomodados com tanto insucesso.
Silvano Raia monta equipe com Sérgio Mies
No mesmo ano de 1967, o Dr. Silvano Raia retorna de Londres como especialista em fígado, convicto de que conseguiria viabilizar o transplante do órgão no Brasil.
Durante três meses, ele percorreu oito estados brasileiros com a intenção de divulgar a cirurgia para médicos. Ao longo desse período foram recrutados profissionais para integrar a sua equipe, com alguns sendo enviados ao Hospital de Pittsburgh, onde estava o Dr. Starzl.
Em 1968 foi realizado o primeiro transplante de fígado no Brasil, resultando em insucesso, que se repetiu por mais quatro vezes até 1972.
Foi apenas seis anos depois, em 1978, que uma invenção marcou significativamente a história dos transplantes no mundo. Com a criação da droga imunossupressora conhecida como ciclosporina, foi possível permitir que a capacidade do organismo de combater vírus ou bactérias ficasse menos abalada na comparação com outras drogas.
Segundo Sérgio Mies, foi nesse contexto que o país se preparou para implementar o primeiro programa de transplante de fígado da América Latina, culminando na realização da operação que está completando 36 anos.
“De 1985 até aqui, nós já fizemos 1.200 transplantes de fígado, com alguns detalhes bem importantes nesse percurso. Desses transplantes, 170 foram feitos com doadores vivos. Ou seja, um parente ou uma pessoa muito próxima do doente doa pouco mais da metade do seu fígado para essa pessoa necessitada”, informa Sérgio Mies.
Foi em 1988, três anos após o primeiro transplante de fígado bem-sucedido da medicina brasileira, que se avançou na técnica cirúrgica a ponto de ser realizado o primeiro transplante de fígado intervivos.
Também concebido no Hospital das Clínicas de São Paulo, e também sob a liderança médica de Silvano Raia, foi conduzido o procedimento que transplantou parte do fígado de um adulto em uma criança.
Recuperação do fígado
Ainda conforme Sérgio Mies, “o transplante de fígado é um procedimento muito complexo, pois são feitas duas cirurgias ao mesmo tempo e que apresentam, tecnicamente, uma série de diferenças”.
Ele complementa que, apesar da complexidade, trata-se de uma intervenção segura. “No caso do transplante intervivos, quando uma parte do fígado de um doador vivo vai para outra pessoa, com o tempo, os dois indivíduos voltam a ter fígados de tamanho normal”, pontua. Isso acontece, segundo o médico, porque “o corpo regula o tamanho do fígado”.
Dessa forma, a técnica inovadora desenvolvida no Brasil foi pioneira na literatura médica mundial, ao ser capaz de preservar a vida de doador e receptor após uma operação.
Curiosidades
Após 36 anos da intervenção cirúrgica mais audaciosa da medicina nacional, Sérgio Mies destaca algumas curiosidades e evoluções dessa trajetória.
Segundo ele, no transplante realizado em 1985, havia uma bomba de transfusão de sangue contendo cinco litros de sangue. Em suas palavras: se a bomba não estivesse ligada, e com a quantidade devida de sangue necessária, a cirurgia nem era iniciada e o paciente nem era anestesiado.
Ele também ressalta o tempo de duração da intervenção como um dos aspectos que mais evoluiu ao longo dessas mais de três décadas.
“O primeiro transplante durou 23 horas e 30 minutos, e hoje em dia não existe mais aquela bomba com cinco litros de sangue. O que acontece é que 50% dos pacientes precisam, no máximo, de uma bolsa de sangue e 50% não recebem nada”, esclarece. Ele complementa que “o tempo de cirurgia que era de 24, 25 e até de 36 horas, que foi o máximo, hoje, quando dura muito, dura quatro horas, sendo no geral por volta de três horas e meia”.
Desenvolvimento dos estudos
Com o passar dos anos, os avanços da medicina e os novos recursos tecnológicos, o fígado é hoje, no entendimento de Sérgio Mies, um dos órgãos mais desenvolvidos dos últimos anos sob o ponto de vista de estudos e de capacitação de especialistas.
“Muita gente hoje entende de fígado, muita gente sabe como tratar um tumor, um câncer de fígado, como tratar um paciente com cirrose, com hipertensão portal”, finaliza o médico.
Entrevista completa
Confira a entrevista completa com o Dr. Sérgio Mies abaixo: